Barco a seco: os museus de história e os impasses da gestão cultural no Brasil atual
Doutor em História, Professor do Departamento de História

(Universidade Federal Fluminense (UFF))

Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro

Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro

Inicialmente, é preciso advertir os leitores de que esse texto se caracteriza como defesa de um ponto de vista em favor da definição dos museus históricos como museus do presente pensado historicamente, o que se contrapõe à ideia de senso comum de que nos museus históricos são onde se vê o passado. Essa perspectiva resulta da compreensão de que a construção da democracia no Brasil recente se definiu em torno da luta por direitos que dão sentido à cidadania contemporânea e que de acordo com a Constituição de 1988 abarca os direitos culturais, o que inclui igualmente os direitos à memória e ao patrimônio cultural. Decorre disso, que os museus do nosso tempo são desafiados a atualizar a sua missão institucional, participando do fortalecimento da cidadania no Brasil. Cabe frisar, ainda, que a argumentação apresentada se favorece especialmente da experiência pessoal de ter estado, entre 2015 e 2020, à frente da direção do museu brasileiro que reúne a maior coleção de caráter histórico, que é o Museu Histórico Nacional, situado na cidade do Rio de Janeiro, e que ruma para completar seu centenário nesse ano de 2022.

Museus para o nosso tempo

Como instituição cultural do mundo contemporâneo, os museus são uma criação europeia do fim do século XVIII, que acompanharam as transformações sociais decisivas da época. Em grande medida, o prestígio dos museus decorreu de sua participação no processo político que afirmou a nação como sujeito principal da ordem social e constituiu o patrimônio cultural como expressão da identidade nacional1. De outro modo, pode-se dizer que os museus foram parte da nova política que se instaurou no mundo social europeu do século XIX e que promoveu o processo de nacionalização das massas2. De todo modo, sua importância social no século XIX justificou seu crescimento e multiplicação, justificando a caracterização de uma era dos museus3. Nesse contexto, o protagonismo coube aos museus de história e de arte histórica, reunindo coleções de raridades da cultura material antiga e representações do passado de repercussão na sociedade, estabelecendo novos sentidos para a relação entre cultura e política. Apenas na segunda metade do século XIX, é que os museus europeus de história natural e de etnografia se constituíram e ganharam presença institucional, especialmente pela sua associação com as estruturas do colonialismo e com o pensamento evolucionista.

O Brasil ingressou na era dos museus com a criação do Museu Real, em 1818, ano da aclamação de d. João VI como rei de Portugal, Brasil e Algarves, no tempo em que a Corte portuguesa estava estabelecida na cidade do Rio de Janeiro. A nova instituição foi definida pela tarefa de “propagar os conhecimentos e estudos das ciências naturais”, conforme consta em seu decreto fundacional4. Transformada em Museu Nacional, no tempo do Império do Brasil, a instituição serviu como referência para a criação do Museu Paraense, atual Emílio Goeldi, em 1866, o Museu Paranaense, em 1876, e depois o Museu Paulista, em 1895, além do Museu do Estado do Rio Grande do Sul, atual Julio de Castilhos, em 1903, afirmando o modelo de museu enciclopédico com foco nas ciências naturais, dedicados à História Natural e Antropologia5. Na contramão da história europeia, os museus históricos brasileiros integraram uma segunda geração de museus criados a partir da década de 1920, sucedendo os museus de ciência naturais criados no século anterior6. Sem dúvida, o marco dessa nova geração de museus foi a criação do Museu Histórico Nacional pelo decreto federal de 2 de agosto de 19227.

 

A criação dessa nova instituição cultural confirmou a importância que o colecionismo dedicado à história nacional havia ganhado na sociedade, ao menos desde a realização da Exposição de História do Brasil, promovida pela Biblioteca Nacional, em 1881, sob a direção de Ramiz Galvão8. A rigor, pode-se indicar que o mesmo movimento que levou à criação do Museu Histórico Nacional, no início da década de 1920, foi acompanhado ainda pela transformação em museus históricos dos antigos museus estaduais, como o Museu Paulista e o Museu Julio de Castilhos, acompanhados mais tarde também pelo Museu Paranaense, abandonando a sua marca de origem associada às ciências naturais.

Do mesmo modo, a tendência por coleções interessadas em representar a cultura nacional inspirou a atividade de colecionadores sistemáticos que constituíram museus privados nos anos de 1920. Essa é a origem do conhecido Museu Mariano Procópio, na cidade de Juiz de Fora, concebido originalmente por Alfredo Ferreira Lage e que foi municipalizado em 19369. Apesar da riqueza de suas coleções, outros museus privados não sobreviveram na ausência de seus titulares, como foi o caso do antigo Museu Simões da Silva, na cidade do Rio de Janeiro, extinto em 1948, cuja coleção se dispersou em leilão realizado anos depois10. Outro destino teve o acervo do Museu David Carneiro, criado na cidade de Curitiba, em 1928, cuja coleção foi adquirida pelo governo do estado do Paraná11. Enquanto Ferreira Lage e Simões da Silva tinham seu passado familiar relacionado à memória imperial como fator de motivação para a construção de suas coleções, David Carneiro foi dos mais importantes defensores do pensamento positivista no Brasil de sua época.

De fato, a promoção de museus históricos vai ser assumida como política pública pelo Estado nacional depois da criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1937, cuja ação vai resultar na criação de uma rede de museus federais que se definiu no tempo do regime autoritário do Estado Novo. Em 1938, seria inaugurado o Museu Nacional de Belas Artes, tendo como base a Pinacoteca da Escola Nacional de Belas Artes. A ação do órgão oficial de preservação do patrimônio cultural do Brasil foi responsável ainda pela criação do Museu das Missões, inaugurado em 1940, na antiga região missioneira na cidade de São Miguel das Missões, seguido da abertura do Museu Imperial, na cidade fluminense de Petrópolis, em 1943, e o Museu da Inconfidência, na cidade mineira de Ouro Preto, em 1944. Nos anos seguintes, apesar das mudanças políticas ocorridas no Brasil, com o fim do Estado Novo e a instauração de uma nova ordem de democracia liberal, o projeto do SPHAN teve continuidade com a implantação de uma rede de museus regionais, todos de sentido histórico. Como indica Letícia Julião, ainda que marcados pela tradição do antiquariado e pela perspectiva da história mestra da vida, de modo geral, se pode dizer que os museus criados pelo SPHAN inovaram na interpretação da história nacional ao valorizar a caracterização da sociedade colonial setecentista, ao invés do legado do período imperial, constituindo coleções associadas aos ciclos econômicos e à cultura do barroco12. Afastavam-se, assim, da interpretação da história centrada no protagonismo social do estado e de lideranças políticas e militares, representada pelo Museu Histórico Nacional.

Não há como negar, porém, que o processo de criação de museus históricos brasileiros entre a década de 1920 e início da década de 1940, corresponde ao período de emergência dos ideais do nacionalismo e sua difusão internacional. No Brasil da Primeira República, o debate sobre a questão nacional, combinou a crítica da ordem liberal com a construção do estado autoritário13. Não sem razão, Gustavo Barroso, o primeiro diretor e idealizador do Museu Histórico Nacional, foi um dos intelectuais expoentes do pensamento nacionalista brasileiro, que se engajou no movimento político do Integralismo e se tornou o mais destacado ideólogo de sua vertente antissemita14. Assim, o tratamento da história nacional a partir do enfoque da história militar definiu, em grande medida, a construção da coleção do Museu Histórico Nacional15. O exemplo pode ser dos mais radicais, mas não deixa de exemplificar o sentido da era dos museus históricos no Brasil.

Diante desse legado incontornável, impõe-se aos museus históricos uma tomada de posição diante do horizonte contemporâneo brasileiro comprometido com a construção da sociedade democrática, construída na luta contra a ditadura e na defesa do estado de direito e da liberdade de expressão.

Não há dúvida de que as exposições de longa duração inscrevem a face mais visível publicamente da interpretação da história promovida pelo trabalho dos museus históricos. Assim, em 2016, o Museu Histórico Nacional brasileiro, iniciou programa de reavaliação de seu circuito de exposição de longa duração sobre a história do Brasil. Além de um programa de investimentos na renovação física das salas do circuito e manutenção de seus equipamentos expositivos, foi definido que a exposição, ainda que mantivesse sua ordem geral em torno dos módulos temáticos, não deveria ter um caráter permanente estático, abrindo-se para possibilidade de substituir ou alternar apresentação de peças da coleção com variações discretas, provocando a atenção do público e valorizando a riqueza das coleções preservadas. Essa iniciativa se iniciou pela promoção da exibição de retratos de mulheres conhecidas pelo seu papel na história do Brasil. Destaca-se o exemplo do retrato de Anita Garibaldi, quadro do pintor brasileiro Joaquim Rocha Ferreira, datado de 1933, ano de sua aquisição por compra pelo museu, e que representa a brasileira que se tornou, por casamento, companheira de lutas políticas de Giuseppe Garibaldi, conhecido como “heróis de dois mundos”, pela sua atuação destacada no processo de unificação italiana, assim como na Revolução Farroupilha (1835-1845), no Brasil, e na guerra civil do Uruguai (1839-1851). Algumas intervenções pontuais foram desenvolvidas, como instalação de vitrine com peças relacionadas à chamada Questão Religiosa, relacionada à crise do regime imperial. Outras resultaram em pequenos rearranjos da exposição, como a instalação em torno do busto do Duque de Caxias, cuja memória de herói militar brasileiro e líder político e de governo, ofusca a lembrança de sua posição de senhor de escravos. Esse empenho na renovação de conteúdos da exposição se desenvolveu com base no trabalho do programa de pesquisa do Museu Histórico Nacional e suas redes de colaboração científica16.

Contudo, o esforço principal, sem dúvida, foi concentrado no compromisso de rever o módulo sobre o Brasil republicano, reforçando a história do tempo presente a partir do enfoque na experiência da latência do tempo como origem do presente, sob a inspiração do pensamento de Hans Ulrich Gumbrecht17. A tarefa foi facilitada, pois o tema da história dos direitos e da cidadania já demarcava o módulo expositivo existente. O enfoque estava na definição de direitos, naturalizando sua instituição, esvaziando o tratamento do sentido histórico de que sua conquista era produto de lutas sociais. Assim, a exposição não destacava a importância dos movimentos sociais e deixava de lado as situações históricas de estado de exceção, que se relacionam às ditaduras e à violência da repressão política. O novo roteiro de exposição se organiza em torno de quatro seções intituladas: República no Plural, que sublinha as variações históricas do regime político; Democracia e Liberdade, que enfatiza a política como prática social baseada no direito ao voto e de liberdade de expressão; A Luta Continua, que destaca o combate à pobreza e a exclusão social; O Desafio do Futuro, que trata do desenvolvimento sustentável diante da sociedade de consumo. A abordagem do conteúdo buscou inspiração em expressões conhecidas da história política: Guerra e paz; Nunca mais!; Todos por um; Favela é cidade; Racismo não!; Quem ama não mata; A floresta somos nós; Celacanto provoca maremoto; Seja marginal, seja herói.

O sentido geral pode ser do programa proposto pode ser exemplificado pela primeira iniciativa que teve como objetivo reformar a última sala de exposição de longa duração do Museu Histórico Nacional, que conclui o circuito de visitação sobre a história do Brasil. Anteriormente, na sala, havia uma grande tela com um vídeo que representava a imagem do Brasil grandioso (ou retumbante), combinando o hino nacional com as riquezas naturais do território nacional, grandes obras públicas como a ponte Rio-Niterói, e expressões do desenvolvimento nacional como plataformas de petróleo e aviões nacionais. Tal como Verena Alberti apontou, essa representação do Brasil não parecia convencer o visitante diante da frase inscrita na saída da exposição: “A história é você quem faz18”. Pode-se acrescentar ainda que não correspondia ao título do módulo expositivo que se chamava Construção da Cidadania.

A reforma da sala, realizada em 2016, substituiu a exibição do vídeo pela apresentação de representações republicanas em pintura e escultura de Tiradentes, o mártir da luta anticolonial na América portuguesa, enforcado e esquartejado em 1792. Sendo personagem histórica do século XVIII, seu culto foi popularizado pela República no Brasil. As imagens reunidas apresentam a sequência da biografia do alferes conduzido à forca. O novo arranjo expositivo passou a exibir a coleção de imagens, acompanhada da inscrição iconográfica da famosa bandeira-poema, criada em 1968, pelo artista brasileiro Hélio Oiticica, conhecida pela imagem de um cadáver junto da inscrição “seja herói, seja marginal”, colocando em pauta a ideia do anti-herói e do bandido social. Ao invés de celebrar os feitos nacionais, o texto insiste na ideia de que os heróis são uma construção social diante dos desafios da sociedade em cada época. O tema surpreende no contexto da conclusão do módulo de exposição dedicado a interrogar o Brasil republicano, especialmente, pelo fato de não respeitar a usual ordem cronológica no tratamento da história. No entanto, não há como negar que Tiradentes é personagem histórica do período colonial, mas sua construção como herói foi realizada no regime republicano instaurado no Brasil em 1889. Ou seja, todas as épocas e lutas sociais promovem os seus heróis, o que faz da questão um tema de todas as épocas. De modo sintético, o que a exposição propõe é provocar o diálogo entre o passado e o presente para instalar o pensamento histórico, sem oferecer dados definitivos, mas compartilhando com o público perguntas para pensar o Brasil em que se vive.

Questão de direitos

Nos nossos dias, os museus podem ser definidos como lugares de memória, de acordo com a definição proposta por Pierre Nora, lançada no início da década de 1980. O argumento do historiador francês afirma que “os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há a memória espontânea19”. Acompanhando o autor, coloca-se a interrogação sobre o fim de uma tradição de memória sacralizadora do passado e que abre espaço para afirmar a reflexão da história sobre si mesma. Os lugares de memória se instalam assim nessa encruzilhada que marca a passagem do tempo em que se vivia na intimidade da memória, que justificava a ordem social estabelecida, para uma nova época em que se promove o interesse pela história reconstituída, valorizando o exame crítico do passado e sua relação com o presente. Portanto, nos dias atuais, pode-se considerar que os museus de história como lugares de memória são conduzidos a se posicionar num ponto de equilíbrio diante da concorrência entre memória e história. Afinal, as sociedades e seus grupos sociais encontram âncoras na memória para se afirmar, mas é inegável também que não encontram mais conforto absoluto nas tradições ou numa herança nacional que fixa e naturaliza a interpretação histórica. Por consequência, é preciso reconhecer o contexto ambíguo vivido na atualidade que mistura pertencimento e desprendimento e que desafia os museus históricos no mundo recente. Diante disso, partindo do ponto de vista de que se impõe aos museus históricos uma tomada de posição diante do nosso tempo, é preciso assumir a crítica da própria história institucional para assumir o compromisso em participar do fortalecimento da democracia, especificamente no caso do Brasil atual.

Assim, não há como deixar de lembrar que a criação do Museu Histórico Nacional brasileiro participou das comemorações do Centenário da Independência do Brasil, tendo sido inaugurado solenemente pelo presidente da República Epitácio Pessoa, em 12 de outubro de 1922. Pode-se imaginar que a data escolhida tenha sido definida pela sua relação com a memória da Independência nacional, uma vez que corresponde ao centenário da aclamação do imperador d. Pedro I —ato simbólico de afirmação do estado nacional, que se seguiu à proclamação da autonomia [nacional] sob o regime imperial— além de ser o dia de seu aniversário. [do primeiro imperador] Não escapa à observação, porém, o fato de que o dia 12 de outubro coincide igualmente com a memória do Descobrimento da América, que no Brasil ganhou sentido político ao integrar o calendário cívico instaurado pelo decreto de 14 de janeiro de 1890, do Governo Provisório, nos primeiros tempos da Primeira República no Brasil, que se estabeleceu na sequência da derrocada do regime imperial20. Interessa aí apontar que, enquanto o Império do Brasil, pelas origens da família imperial, se legitimava a partir do legado lusitano e europeu; a cultura cívica republicana no Brasil encontrou fontes de legitimação simbólica na experiência republicana das Américas e, certamente, o culto da data do Descobrimento da América traduzia os ideais do novo regime21.

De toda maneira, pode-se supor que a escolha da data do Descobrimento da América para a inauguração do Museu Histórico Nacional, em 1922, combinava igualmente com o momento de confraternização internacional promovido pelo governo do Brasil para comemorar o centenário da Independência nacional22. A ocasião teve como marco principal a Exposição Internacional Comemorativa do Centenário da Independência do Brasil, realizada na cidade do Rio de Janeiro e oficialmente inaugurada no dia 7 de setembro, ou seja, na data cívica que o regime republicano consagrou para comemorar o ato de fundação do estado nacional e que se tornou popular ao longo dos anos23. O evento, que se estendeu por um ano, foi o maior do gênero da história do Brasil e se relacionava diretamente com a história das sucessivas edições de exposições nacionais, realizadas desde 1861, e com a participação do Brasil no circuito das grandes exposições universais, confirmando sua presença no concerto das nações.

Não seria exagero caracterizar a Exposição Internacional Comemorativa do Centenário da Independência do Brasil como uma festa cívica que, pela exibição tecnológica, ganhou ares de vitrines do progresso24. Na véspera da inauguração oficial, à meia-noite, a população da cidade assistiu a uma exibição extraordinária que a crônica da época descreveu como “apoteose inicial25”. Canhões de luz vindos do mar e da terra lançaram grandes feixes de iluminação que riscaram o céu noturno da cidade do Rio de Janeiro, de um modo nunca visto, criando um clima feérico. A sessão solene de abertura do evento foi outro momento em que a tecnologia fez a diferença. O público foi surpreendido pelo som que ecoava em todas as áreas públicas da exposição, acompanhando o discurso inaugural do presidente da República, realizado no Pavilhão de Festas, seguido da música da ópera O Guarany, de Carlos Gomes, direto do Teatro Municipal. Toda a gente presente testemunhou, assim, a primeira transmissão radiofônica oficial do Brasil, por meio de uma antena instalada no morro do Corcovado, alcançando receptores em Niterói, Petrópolis e São Paulo, que permitia que o som ecoasse por alto-falantes instalados na torre que dominava a área da Exposição Internacional. O que importa é sublinhar que o grande evento comemorativo foi dominado pelo fascínio tecnológico, que se confirmava ainda na iluminação decorativa noturna dos pavilhões e no parque de diversões, cujos equipamentos movidos à eletricidade se tornaram a grande atração popular da ocasião. A festa cívica se transmutou em espetáculo da modernidade26.

Nesse contexto de celebração da vida moderna é que o Museu Histórico Nacional se instalou numa ala das dependências do antigo Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro transformado, para a ocasião, em pavilhão das Grandes Indústrias, localizado ao lado do pavilhão de Festas, que abrigou as cerimônias solenes como a abertura oficial, junto ao pavilhão dos Estados brasileiros, do pavilhão do Distrito Federal, em frente ao pavilhão de Estatísticas e o pavilhão de Caça e Pesca todos localizados na área da Ponta do Calabouço, onde se iniciava a avenida das Nações, onde foram alinhados os pavilhões das diferentes representações estrangeiras e que conferiam o caráter internacional da exposição comemorativa. Na altura, o Museu Histórico Nacional se instalou em apenas duas salas do corpo principal, diante do Pátio Minerva27.

Diante das imagens de época, é inevitável perceber que a grandiosidade do evento comemorativo se relacionava com a força simbólica da arquitetura dos pavilhões reunidos na grande área urbana. A marca dos estilos históricos conferia teatralidade ao espaço da festa, inscrevendo as diferenças civilizacionais no palco pelas formas da arquitetura historicista que identificava as diferentes representações nacionais. Era tão forte a inscrição da tradição, que os pavilhões privados também a assumiram, como no caso do pavilhão das Indústrias Matarazzo que se apresentou como um palácio florentino, ou o caso do pavilhão da empresa suíça de chocolates Nestlé que assumiu as feições da tradição construtiva alpina.

A idealização dos estilos históricos, porém, justificou que o antigo edifício colonial do Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro tenha sido inteiramente reformado para abrigar o pavilhão das Grandes Indústrias, assumindo as feições correspondentes a uma versão de arquitetura neocolonial que se impunha naquele momento no debate como a linguagem formal representativa da cultura nacional28. Nesse complexo arquitetônico de tradição idealizada é que o Museu Histórico Nacional foi instalado, sob a inspiração da fórmula do culto da saudade e que, tal como elaborada pelo seu fundador, também pode ser entendida como culto das tradições29. Em artigo anterior à criação da instituição museal, publicado na revista Ilustração Brasileira em dezembro de 1920, Gustavo Barroso havia enunciado que “ainda era tempo duma ação salvadora, de se realizar a fundação de um verdadeiro museu histórico no qual se pudesse reunir para ensinar o povo a amar o passado, os objetos de toda sorte que estes representam (...)”30. Desse modo, Gustavo Barroso antecipava a imagem do museu como escola de patriotismo que se afirmou no decreto de criação do Museu Histórico Nacional que dizia:

“Considerando que será da maior conveniência para o estudo da História Pátria reunir os objetos a ela relativos que se encontram nos estabelecimentos oficiais e concentrá-los em um museu, que os conserve, classifique e exponha ao público, e, enriquecido com os obtidos por compra ou por doação ou legado, contribua, como escola de patriotismo, para o culto do nosso passado”31.

Não se pode perder de vista, porém, que a missão institucional do Museu Histórico Nacional de ser um centro de educação cívica renovava a missão dos museus no Brasil. Os museus mais antigos do país se constituíram como centros de pesquisa científica e de reunião de pesquisadores, não definindo a educação cívica como tarefa principal e, por isso mesmo abriam eventualmente para visitação pública. Ao contrário, o Museu Histórico Nacional, após sua instalação definitiva, instalou em sua porta de entrada a placa que informava “Entrada permitida”, convidando assim toda a gente para visitação, preparando suas galerias de exposição para a tarefa permanente de recepção de visitantes32.

O que importa nesse panorama é apontar que a fundação do Museu Histórico Nacional, em 1922, situa-se entre a modernidade e a tradição. Nesse caso é possível caracterizar um contexto de concorrência entre dois regimes de historicidade, seguindo a conceituação proposta pelo historiador francês François Hartog33. De um lado, o que a Exposição Internacional traduz é a experiência do tempo sob o regime de historicidade moderno, que se sustenta na ideia de evolução e progresso e anuncia a superação do passado, sustentando a convicção de que o futuro será diferente do passado. De outro lado, o recurso à tradição se organiza em torno de um regime de historicidade antigo, que, seguindo a máxima da história mestra da vida, percebe o passado como exemplar e, portanto, como medida do futuro. Assim, pode-se apontar que as comemorações oficiais do Centenário da Independência do Brasil e a criação do Museu Histórico Nacional se colocaram diante de uma experiência do tempo ambígua, que ora apostava no novo, ora encontrava conforto no antigo.

Esse quadro de época, evidentemente, se contrapõe a outra experiência do tempo na atualidade do Brasil recente. Como o próprio Hartog indica, a atualidade é marcada sob a onipresença do presente que situa a época atual diante de um presente cada vez mais inchado, hipertrofiado, o que permite caracterizar o regime de historicidade presentista. Nos termos do historiador francês, a experiência de um presente “dilatado” e inquieto do presentismo, impõe uma relação com o passado que não é definida pela lição para o presente, enquanto a relação com o futuro é pautada pela crítica do progresso e a constatação de que as utopias não operam mais num horizonte absoluto34. No caso brasileiro, é incontornável considerar que a democracia contemporânea se nutriu da denúncia da violência de estado imposta pelo estado de exceção constituído a partir do golpe de estado de 1964 e da luta contra as injustiças sociais que as promessas dos sucessivos planos econômicos não conseguiram superar.

O desenvolvimento de políticas de memória relacionadas a processos sociais traumáticos e de reconhecimento da diversidade da experiência histórica e de seus agentes sociais se tornaram motivo que desafia a renovação dos museus históricos na atualidade. Coloca-se, então, a necessidade de rever a concepção de que os museus históricos são espaços de celebrar o passado nacional ou as origens da nação, para afirmar os museus históricos como museus do presente e para o presente que se definem pela abordagem do presente em perspectiva histórica35.

De modo geral, é possível considerar, então, que museus contemporâneos são convocados a participar da vida em sociedade não importa qual seja o objeto de estudo de suas coleções e exposições. Na verdade, em alguma medida isso já estava posto desde a Declaração de Santiago do Chile36, de 1972, produto da Mesa-Redonda do Conselho Internacional de Museus (ICOM) que proclamava:

“Que o museu é uma instituição a serviço da sociedade, da qual é parte integrante e que possui nele mesmo os elementos que lhe permitem participar na formação da consciência das comunidades que ele serve; que ele pode contribuir para o engajamento destas comunidades na ação, situando suas atividades em um quadro histórico que permita esclarecer os problemas atuais, isto é, ligando o passado ao presente, engajando-se nas mudanças de estrutura em curso e provocando outras mudanças no interior de suas respectivas realidades nacionais.”

Não há dúvida que essa perspectiva ganha força nos dias de hoje na atividade de muitos museus pelo mundo, o que inspira a mobilização internacional promovida pelo Conselho Internacional de Museus em torno de uma nova definição de museus37.

No plano internacional, essa perspectiva contribuiu para renovar o papel social dos museus de história na atualidade e sua dedicação às memórias sensíveis e a história dos traumas sociais. O tratamento da história nacional, ainda que assuma a nação como corpo social, é compreendida igualmente pelos seus conflitos. No plano internacional, essa renovação pode ser ilustrada pela afirmação do circuito dos museus do Holocausto que se multiplicaram pelo mundo, especialmente depois do museu criado na cidade Washington. D. C, capital dos Estados Unidos, em 1993, e da inauguração, em 2005, tanto do Museu da Shoah, em Paris, França, quando no novo Yad Vashem - Museu do Holocausto, em Jerusalém, Israel. O Brasil se integrou nesse circuito com a criação do Museu do Holocausto de Curitiba, inaugurado em 2011. A denúncia da violência de estado e a causa dos direitos humanos mobilizou a criação de muitos outros museus pelo mundo, como o Museu do Apartheid, de Johanesburgo, criado em 2001, e que encontra correspondência na América do Sul em diversas instituições como o Memorial da Resistência, situado na cidade de São Paulo, no Brasil, inaugurado em 2002, e o mais grandioso projeto institucional do gênero na região que é o Museu da Memória, de Santiago do Chile, aberto ao público em 2010. A esse conjunto de museus contemporâneos de história podem ser reunidos ainda o Museu da Escravidão, de Liverpool, inaugurado em 2008, e o Memorial ACTe – Museu da Escravidão e do Tráfico Negreiro, inaugurado em Guadalupe, no Caribe francês, aberto em 2015. No ano seguinte, no famoso circuito de museus Smithsonian, em Washington D. C., junto ao tradicional Museu de História Americana, foi inaugurado o Museu de História Afro-Americana, que logo se tornou um ponto de grande atração popular na capital dos EUA. Impossível não deixar de considerar os vários museus correlatos no Brasil, entre os quais se destacam o Museu Afro-Brasileiro, na cidade de Salvador, Bahia, aberto em 1982, e o Museu Afro-Brasil, de São Paulo, inaugurado em 2004. Mais recentemente foi aberto pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro o Museu de História e Cultura Afro-Brasileira (Muhcab), no Rio de Janeiro, em 2021. Essa rede se ampliaria ainda com os espaços museológicos criados em territórios quilombolas espalhados pelo país. Não há como deixar de mencionar que todas essas instituições participam de processos de reparação simbólica, mais ou menos integradas em políticas públicas abrangentes.

No caso do Brasil, porém, não se pode dizer que o estado tenha sido protagonista nesse universo. Ao contrário, há evidências de que o estado tem negligenciado suas responsabilidades com a cultura e, em especial, com o patrimônio cultural, diante dos sucessivos incêndios que têm destruído parcelas significativas de coleções emblemáticas para a cultura nacional38. Por isso mesmo, no Brasil, chama atenção a força do movimento social da Museologia Social que embasa a formação de museus comunitários que se definem por práticas museais inovadoras. No caso do Rio de Janeiro, pode-se apontar o Museu da Maré como o mais significativo exemplo dessa nova era de museus, que ao se dedicar à memória dos moradores de um grande complexo de favelas e conjuntos habitacionais representa a luta pela causa do direito à moradia e à cidade.

Suzy Santos apontou que, entre 1968 e 2017, formaram-se 196 ecomuseus ou museus comunitários no Brasil. Ainda que os dados indiquem que a conjuntura da Constituição de 1988 foi decisiva para a multiplicação desse gênero de instituição museal, foi na primeira década do século XXI que se criou o maior número de ecomuseus e museus comunitários, somando um total de 76 instituições reconhecidas (de caráter mais ou menos formal). Nesse quadro geral, multiplicaram-se os museus indígenas, quilombolas, de comunidades de trabalhadores (rurais, extrativistas, da pesca etc.), comunidades urbanas e favelas e representativos de causas ambientais ou identitárias, como os museus que trabalham a luta LGBTQI+39. A reboque da força dessa tendência social, foi implantando o Programa Pontos de Memória, criado pelo antigo Ministério da Cultura, que lançou editais entre os anos de 2009 e 2014 com o objetivo de patrocinar “processos museais protagonizados e desenvolvidos por povos, comunidades, grupos e movimentos sociais”40. Nesse caso, vale destacar que o trabalho com a memória social tem se afirmado pelo protagonismo da sociedade civil organizada e não pela ação de estado.

Nesse quadro geral, a causa da defesa da preservação patrimônio cultural no Brasil atual tem se apoiado mais do que nunca na mobilização da sociedade civil. Não apenas pelo engajamento dos movimentos sociais em torno do debate sobre os sentidos da representação da sociedade nacional, mas igualmente pela lógica do patrocínio cultural no Brasil que viabiliza o financiamento de ações culturais com base no princípio do incentivo fiscal e que situa o papel do estado mais no monitoramento do que na ação direta. Diante disso, coloca-se a necessidade de reposicionamento dos museus estatais ante a sociedade brasileira, pois é nela que precisam buscar o apoio que garantem sua sustentabilidade, e igualmente, deem sentido à sua missão institucional.

No caso do Museu Histórico Nacional, a dedicação a esse reposicionamento como museu de estado, resultou no debate acerca da redefinição de sua missão institucional. Evidentemente, a tarefa da época de sua fundação —de se dedicar à educação cívica— e que sobreviveu por muitas décadas já havia sido superada, ao menos desde o programa de modernização desenvolvido a partir do fim da década de 1980 e que culminou nas grandes obras de infraestrutura realizadas entre 2006 e 201041. A mobilização interna em torno da construção do Plano Museológico quadrienal 2016-2019 resultou na elaboração da nova missão institucional definida nos seguintes termos: “Promover a mobilização coletiva para valorizar a consciência histórica e o direito ao patrimônio cultural do Brasil, por meio da formação e preservação de acervo, ação educativa e construção de conhecimento42”. A formulação buscou ressaltar o compromisso institucional com o processo de defesa do direito ao patrimônio cultural, qualificando assim o sentido dos serviços técnicos típicos de museus no marco de valorização da cidadania. Desse modo, a instituição buscou se situar no marco da luta por direitos culturais que o Brasil reconheceu de modo pioneiro na sua Carta Magna de 198843. O Museu se situa, portanto, como elemento da construção da democracia no Brasil, considerando que seu fortalecimento institucional acompanha a medida do fortalecimento da cidadania no Brasil.

Fórum de construção de conhecimento

Foi em 1971, que Duncan F. Cameron publicou um conhecido artigo que lançou a ideia de que os museus nos dias atuais viviam uma crise de identidade, sobretudo, porque a imagem de templo das musas já não bastava mais para as demandas da sociedade contemporânea. Assim, o debate conduziu a valorização da ação de comunicação dos museus, constituindo a imagem do museu como fórum44.

É possível considerar que o compromisso dos museus de história com a afirmação do direito à memória e ao patrimônio cultural é favorecido pela ideia do museu-fórum. Ou seja, com a proposta de que o museu histórico é um espaço de encontro de muitas vozes, de diálogo e de autoridade compartilhada sobre o conhecimento histórico. Tal como propõe Michel Frisch, esse entendimento altera as relações entre conhecimento académico e discurso público —ou formas culturais dominantes representadas pelas instituições— empoderando, assim, perspectivas alternativas45. O princípio da autoridade compartilhada insere os museus históricos no terreno da História Pública, ou seja, colocando em questão os usos públicos da história e as práticas que relacionam o conhecimento histórico com seus públicos, pensado na produção da história feita para o público, mas que pode ser igualmente produzida com a contribuição da história do público, o que impõe repensar a relação história e público, conforme aponta Ricardo Santhiago46.

Nessa direção, o Museu Histórico Nacional procurou se constituir como espaço de diálogo, abrindo seus espaços de reunião para grupos de pesquisa, organizações governamentais, especialmente de assistência social, além de organizações não-governamentais para realizarem encontros, colóquios, seminários e atividades variadas. De modo mais significativo, no entanto, o pressuposto da ideia de museu-fórum inspirou a construção de um programa sistemático de educação museal e de renovação das práticas de curadoria de coleções.

No campo da educação museal, o trabalho no Museu Histórico Nacional resultou na elaboração do documento sobre a política educacional na instituição, que conceituou a experiência institucional desenvolvida entre 2016 e 201947. Assim, definiu-se o programa de desenvolvimento de formação de público, renovando as práticas de organização de visitas mediadas a diferentes públicos (escolas, grupos, deficientes, novos públicos etc.). Ao lado disso, vale destacar a estruturação do programa de criação e pesquisa em educação museal (pesquisa de públicos, atividades de grupo de pesquisa, estágio, formação continuada etc.); e o programa de desenvolvimento de parcerias com outras instituições. Vale ressaltar que essa iniciativa andou junto com a implantação do Centro de Referência de Educação Museal, que se constituiu com base na doação da coleção de livros de conhecida educadora de museus no Brasil e que tem como objetivo reunir a produção acadêmica sobre educação museal, envolvendo assim o trabalho da biblioteca da instituição, tradicionalmente associada à pesquisa ou a preservação de coleções de impressos com sentido museológico, especialmente as coleções de obras raras.

Essa mobilização em torno da ação educativa ganhou forma especialmente em torno do projeto Bonde da História e sua versão infantil Bondinho da História, que ofereciam um programa permanente de visitas temáticas nos fins de semana, com o objetivo de conquistar novos públicos para o Museu e atrair comunidades de sentido. Os projetos alcançaram ótima repercussão, mantendo público fiel, além de inserções de mídia de boa repercussão tanto em redes sociais como eventualmente de mídias, como a televisão. Toda a mobilização de públicos se estruturava a partir de temas de interesse geral representados na exposição de longa duração do Museu Histórico Nacional, como “Descobrimento ou invasão?”, “Independência ou morte!, “Presença Negra no Museu”, “Umbanda na história do Brasil”, “Museus, Memória e Mulheres”, “Mitos e mentiras do Brasil”, e para as crianças “Detetives do MHN” “Brincando no Pátio dos Canhões” Do Móvel ao Automóvel”, “Oxalá e o segredo das yabás”, “Mani e suas Aventuras por nossa História”, entre muitos outros temas. O tema da visitação propunha um recorte específico da exposição, dirigindo o olhar sobre peças ou conjunto de peças específicas, buscando atrair para elementos que se perdem numa visita geral abrangente e, sobretudo, propondo uma interrogação compartilhada com a participação dos públicos. Pode-se considerar que seu poder de atração estava menos das vitrines expostas e mais nas dinâmicas que mobilizavam visitantes que tinham interesse especial na reflexão histórica. No sentido de mobilizar comunidades, desenvolveu-se também o projeto voltado para atender deficientes, preparando a instituição especialmente para atender cegos e surdos, o que foi importante para repensar formas de comunicação no Museu Histórico Nacional. Desse compromisso derivou a instalação de maquetes táteis ao longo de todo o circuito de exposição de longa duração, pensado para a visitação de cegos, mas que se torna igualmente atraente para videntes curiosos pela experiência de tocar peças em museus. Toda essa mobilização foi coordenada por educadores da casa que se basearam no trabalho de uma equipe de educadores contratados. Infelizmente, no contexto da pandemia do COVID-19, nos anos de 2020 e 2021, o contrato foi suspenso e diante dos constrangimentos de orçamento fica a dúvida se será possível retomar as atividades e dar continuidade ao programa.

Contudo, a atividade mais inovadora e significativa, pode-se dizer, realizou-se em torno da curadoria de coleções, constituindo um programa de curadoria compartilhada que resultou na construção de coleções de peças selecionadas a partir do diálogo dos técnicos do Museu com representantes dos movimentos sociais. Esse trabalho se desenvolveu depois de um debate interno que resultou na elaboração de um documento de Política de Aquisição e Descarte de Acervos Coleções, que partindo do reconhecimento geral da história e das características das coleções do Museu Histórico Nacional definiu três linhas temáticas de trabalho: a) História do Estado Nacional no Brasil, relacionada à história das instituições e das elites políticas, bem como das representações do passado nacional; b) História social do Brasil, relacionada à história das práticas sociais, modos de vida e cotidiano, assim como dos processos de afirmação de identidades coletivas e étnicas; c) História do colecionismo, relacionada ao estudo da história de coleções e colecionadores48.

Diante disso, perseguindo a meta de renovação do módulo de Brasil republicano do circuito de exposição de longa duração, constatou-se a necessidade de adquirir conjuntos de peças capazes de traduzir os conteúdos propostos pelo novo projeto expositivo. A abordagem da história dos processos de conquistas de direitos exigia encontrar expressões da cultura material próprias do movimento é a dinâmica das lutas sociais, capazes de traduzir relações passado-presente, especialmente, relativas à defesa do direito à cidade, da tolerância religiosa e da causa do movimento de mulheres. Com esse intuito, iniciou-se um trabalho com rodas de conversa com militantes do movimento feminista e do movimento negro, assim como conversas com representantes do movimento do Museu das Remoções, que lutam pelos direitos dos moradores da comunidade urbana da Vila Autódromo que foram atingidos pela política de remoção, no contexto das Olimpíadas de 2016. O maior desafio das rodas de conversa era justamente compartilhar o foco na cultura material que é própria do mundo dos museus. Hoje, grande parte dos produtos reunidos por esse programa de trabalho está integrado na exposição de longa duração e apresentado aos públicos do museu49.

No caso das feministas, ao observar o grande número de escritoras de livros, por exemplo, se investiu em recolher itens relativos às práticas de escrever, como óculos, cinzeiro, além de itens associado a práticas de mobilização política. Importante é que o diálogo em rodas de conversa com os representantes desses movimentos sociais permitiu compartilhar a autoridade do conhecimento sobre a história das lutas sociais e sobre a cultura material. Assim, os vestígios de arquitetura da comunidade removida da Vila Autódromo foram reunidos, em exposição, aos vestígios das edificações do morro do Castelo, que podem ser compreendidos como documentos de uma das primeiras remoções forçadas de comunidades urbanas na cidade do Rio de Janeiro. As peças reunidas pelo movimento feminista se combinaram aos retratos de mulheres da coleção existentes no Museu. O mais surpreendente foi o caso do movimento negro, cuja colaboração [de conhecimento] propiciou a descoberta, na Reserva Técnica, de uma coleção de um terreiro, que de modo inusitado foi doada na década de 1990. Não havendo especialistas na matéria, tendo sido pouco documentada, as peças foram separadas pelas suas características materiais e se perdeu a memória do conjunto. Foi numa visita técnica com representantes do movimento negro que o conjunto foi percebido e na sequência, estudado. Todo o trabalho de tratamento das peças da coleção passou a ser acompanhada por um pai de santo Tat'Etu Lengulukenu, do Terreiro Inzo Unsaba Ria Inkosse, do município fluminense de Paraíba do Sul, que orientou, inclusive, o projeto de exposição.

Uma última iniciativa nesse programa de trabalho foi desenvolvida com apoio da organização suíça History & Heritage, de reunião com instituições relacionadas à memória dos judeus no Brasil que tinha como objetivo reunir coleção sobre a história da imigração no Brasil. Essa iniciativa se justificava igualmente como uma forma de demonstrar o reposicionamento do Museu Histórico Nacional diante da imagem de seu diretor e fundador conhecido como protagonista do antissemitismo no Brasil, além de retomar a memória da exposição Heranças e lembranças imigrantes judeus no Rio de Janeiro, realizada, em 1989, no Museu Histórico Nacional50.

Na história do Museu Histórico Nacional a curadoria foi, na origem da instituição, tarefa de seus servidores especializados. A partir da década de 1980, o debate sobre a renovação do circuito expositivo e o tratamento de conteúdos históricos se desenvolveu com a consultoria de pesquisadores universitários com contribuição historiográfica de referência. A partir de 2016, a instituição começou, então, a experimentar a curadoria compartilhada com atores sociais representados pelas coleções reunidas, sob a inspiração do debate sobre a História Pública, aprofundando a ideia de definir o museu como fórum de produção de conhecimento. Esse movimento demonstra a dedicação da instituição em manter vivo o Museu Histórico Nacional como centro de produção de conhecimento histórico inovador a partir das relações entre história e cultura material.

Museus que resistem

Recentemente, o processo de seleção pública para o cargo de direção do Museu Histórico Nacional tem demonstrado o limite da ordem institucional dos museus no Brasil decorrente do Estatuto dos Museus, nome pelo qual ficou conhecida a Lei federal nº 11.904 de 14 de janeiro de 2009. O cargo ficou vago em fevereiro de 2020 e, desde então, dois processos seletivos foram instalados sem resultado. O primeiro, instaurado por aviso de chamamento público publicado no Diário Oficial da União, em 18 de novembro de 2020, foi revogado pelo despacho de abril do ano seguinte, em que consta como motivação o contexto geral da pandemia, além da Portaria do Ministério da Economia nº 13.623, de 10 de dezembro de 2019, que levou a decisão de desqualificar o Museu Histórico Nacional como Unidade Administrativa de Serviços Gerais (UASG), o que na prática esvazia sua autonomia administrativa e de gestão orçamentária51. O segundo chamamento público para seleção do cargo comissionado de diretor do Museu Histórico Nacional foi publicado em Diário Oficial da União 23 de novembro de 2020, com o resultado final publicado em 10 de setembro de 2021.

Por postagem em rede social, fica público que o nome da classificada em primeiro lugar, a historiadora Luciana Conrado Martins, experiente profissional da educação museal e da gestão cultural, não teve sua candidatura aprovada pela Casa Civil da Presidência da República, apesar da indicação da presidência do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Na postagem em página pessoal de Facebook, a terceira colocada na seleção pública, Doris Rosangela Freitas do Couto, museóloga e diretora do Museu Julio de Castilhos, do estado do Rio Grande do Sul, declarava publicamente que foi consultada pela presidência do Ibram sobre seu interesse em assumir o cargo de diretora do Museu Histórico Nacional. A nota postada declarava sua recusa, defendendo o respeito ao resultado da seleção pública, posicionando-se em favor da nomeação da primeira colocada. A manifestação evidencia que o segundo colocado, o jornalista e gestor cultural, Jorge Douglas Alves Fasolato, superintendente de museus da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro também recusou, demonstrando respeito pelo processo institucionalizado. O posicionamento público de Dóris Couto, profissional qualificada e respeitada, coloca em xeque qualquer outro dos oito candidatos aprovados no processo seletivo, uma vez que explicita que sua decisão pode ser traduzida como forma de compactuar com o ato arbitrário de governo que não considerou o resultado do julgamento técnico de competências profissionais dos candidatos, preferindo a restrição de algum critério político não divulgado por razões de ordem de “conveniência e oportunidade”, para usar o jargão da administração pública.

A modalidade de seleção pública para o cargo de direção do Museu Histórico Nacional decorre do marco legal instaurado pela criação do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), em 2009. Como autarquia federal, o Ibram se tornou órgão responsável no Brasil por “promover e assegurar a implementação de políticas públicas para o setor museológico”, integrando em sua estrutura várias unidades museológicas federais, como o Museu Histórico Nacional52. Assim, o processo público para seleção de dirigentes dos museus foi definido no artigo 34 do decreto federal nº 8.124, de 17 de outubro 2013, que lista os critérios técnicos e objetivos de qualificação: formação; conhecimento da área de atuação do museu; experiência de gestão; e conhecimento das políticas públicas do setor museológico53. Nesse sentido, a institucionalização do processo visava dar caráter objetivo e garantir que a gestão dos museus fosse pautada em bases técnicas e profissionais, evitando formas subjetivas de controle interno. O caso recente do Museu Histórico Nacional evidenciou os limites da política nacional de cultura e de museus no Brasil. Ao fim e ao cabo, deixando claro que a cultura não se tornou questão de estado, mas continua subordinada a assunto de governo e subordinado à situação política de ocasião. Esse o dilema em que se coloca a política pública para a cultura e o patrimônio cultural no Brasil atual e que permite reconhecer o desafio posto para a gestão de museus no país.

Na verdade, no ano de 2015, vale frisar que o cargo de direção do Museu Histórico Nacional foi dos primeiros museus do Ibram a serem ocupados por seleção pública, sendo o primeiro realizado para um dos museus das unidades principais do órgão. Pode-se dizer que a seleção representou uma novidade ao garantir a indicação do nome de profissional externo aos quadros do Ibram, com trajetória acadêmica como professor universitário titulado, com experiência no mundo da ação cultural pelo trabalho em organização não-governamental de ação comunitária e na gestão de órgão público. Mais importante do que a novidade, o resultado valorizou o próprio processo seletivo e a institucionalidade em construção.

Cabe registar, que poucos dias depois da nomeação do novo diretor do Museu Histórico Nacional, numa ocasião de fortes chuvas típicas do verão carioca, deslocaram-se telhas e abriu-se uma seção de telhado da ala conhecida como Casa do Trem, que corresponde ao edifício da antiga fundição militar, onde fica instalado o Serviço de Numismática, que na ocasião sofreu uma grande inundação que atingiu de modo determinante as instalações da exposição de longa duração do setor. Apesar de não ter colocado em risco o acervo, os danos prejudicaram as condições gerais de trabalho e, sobretudo, levou a decisão de desmontar toda a exposição. Ficou evidente a necessidade de investimentos imediatos nos reparos, especialmente do telhado. Os recursos do orçamento da União não garantiriam uma ação imediata e tampouco a largo prazo. O apoio da Associação de Amigos do Museu Histórico Nacional (AAMHN) foi decisivo, pois viabilizou um investimento de bom valor para o reparo do telhado para garantir condições de reinstalação do setor. A participação da sociedade civil na sustentabilidade do museu se evidenciou como fator importante. Evidentemente que a partir daí os cuidados com a coleção de numismática se tornou prioritário.

O fato é que, então, a necessidade de viabilizar a atração de investimentos para a melhoria da infraestrutura do Museu Histórico Nacional se impôs como meta fundamental. Assim, foi necessário rever a intenção otimista apresentada no plano de trabalho para a seleção pública para o cargo de diretor de construção de anexo e refuncionalização de áreas para ampliar o circuito de exposição abrindo ao acesso público o terceiro andar da edificação histórica, apresentando maior parcela das coleções, criando um circuito alternativo ao histórico-narrativo, constituindo um circuito tipológico para tratar a história do design antes do design54, o que é fartamente representado na coleção do Museu Histórico Nacional. No entanto, o fechamento à revelia da Galeria de Numismática para obras, representou uma redução de área de exposições. Em cinco anos se realizou a reforma dos espaços do setor, mas a galeria terminou sendo utilizada para abrigar o escritório da Representação Regional do Ibram, que se espera seja em caráter temporário. A falta de setor especializado e de quadros profissionais em arquitetura e engenharia para apoiar qualquer ação de reforma e manutenção predial tornou o horizonte do desafio muito mais largo.

A partir daí, o desafio de garantir recursos para viabilizar investimentos se tornou uma prioridade absoluta, pois logo somou-se à constatação de que a edificação histórica contava apenas com sistema de prevenção a incêndio e não de combate, assim como se constatou a precariedade da rede elétrica com riscos eminentes que impuseram rotina de controle disciplinado, especialmente devido à demanda de energia por aparelhos de ar-condicionado. A isso se somou ainda problemas da rede de esgoto antiga e ineficiente, bem com a necessidade de dragagem no terreno para evitar inundação e processo de umidade que afetava as estruturas edificadas. Com recursos do orçamento do Ibram e graças à consideração da presidência do órgão, várias iniciativas emergenciais pontuais foram realizadas e com apoio da AAMHN alguns investimentos para viabilizar a contratação de serviços de diagnósticos e projetos executivos também foram garantidos. A colaboração com a Prefeitura, em alguns momentos, e com a concessionária de serviços de esgoto, permitiu contornar alguns desafios. Adiante, montantes expressivos de recursos foram quase alcançados por meio de participação em editais do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES) e do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDD), do Ministério da Justiça, que reunidos aproximavam-se de 17 milhões de reais e dariam conta de todo o programa de obras estabelecido. Os recursos do FDD viriam por repasse de orçamento da União, mas sua maior parte foi perdida pela incapacidade administrativa do Ibram e seus museus. Quanto aos recursos do BNDES, com a administração da AAMHN, espera-se que ainda sejam garantidos, mas passados os anos, o processo ainda se encontra em tramitação. De todo modo, o projeto de melhoria e qualificação da arquitetura e da engenharia predial se tornou uma condicionante prévia para futuros projetos de expansão.

Na esteira desse processo de enfrentamento dos problemas gerais de infraestrutura e de busca por recursos complementares, descobriu-se que as condições institucionais existentes também eram frágeis. Toda a organização interna e a missão institucional do museu não haviam sido formalmente estabelecidas até então, o que certamente foi um fruto do quadro das mudanças institucionais frequentes desde a década de 1990. Então foram extintos os tradicionais órgãos da gestão cultural, devido a um ambiente de reforma neoliberal radical do governo Collor. Esse desmonte da levou anos para ser superado, não sendo fácil a recomposição da gestão cultural. O fato é que o Museu Histórico Nacional, o mais antigo da rede de museus do Ibram não tinha regimento interno, nem contava com referência para conceituar os processos de trabalho desenvolvidos. Estranhamente não era exceção e repetia o quadro da rede de museus federais vinculados ao Ibram e que era oriundos da antiga estrutura do IPHAN. Sem o arcabouço formal, a instituição não reunia condições plenas para participar de editais ou pleitear investimentos com patrocínio da sociedade civil.

Nesse caso, o desafio criou a oportunidade para redefinir com mais liberdade as condições gerais de gestão institucional, valorizando especialmente o planejamento interno. Assim, ao lado da aprovação do regimento interno pela portaria do Ibram nº 65, de 22 de fevereiro de 2018, realizou-se um processo de mobilização do corpo de servidores para construção do Plano Museológico de 2016-2019 e de 2020-2023, propondo formas de monitoramento das metas e ações previstas por meio de relatórios setoriais que serviam para oferecer os dados de avaliação de resultado a serem apresentados nos relatórios anuais de atividades da instituição. A iniciativa permitiu oferecer parâmetros metodológicos que foram valorizados no âmbito do Ibram. Todo esse esforço, teve como produto principal mobilizar os servidores da casa para repensar a organização interna e contribuir para seu fortalecimento institucional, buscando atualizar o museu com seu tempo.

Foi igualmente importante mobilizar a Associação de Amigos e reposicionar sua ação frente ao quadro da produção cultural no país para fortalecer sua ação de apoio ao Museu Histórico Nacional. O mais importante foi atualizar a organização interna da administração contábil da entidade e a contratação de empresa de produção cultural para ampliar possibilidades de trabalho por meio de ação executiva, estruturando-se internamente para concorrer em editais públicos variados e, especialmente, para desenvolver Plano Anual e a busca de patronos corporativos, por meio da Lei de Incentivo à Cultura. O resultado desse trabalho tem apresentado resultados importantes, permitindo o Museu garantir seu programa de investimentos nas suas atividades finalísticas no contexto atual. Vale destacar a contribuição valiosa da Associação de Amigos para patrocinar as ações de restauração de peças. Além disso, foi graças a esse apoio que se tornou possível a retomada da aquisição de peças de particulares ou participando regularmente de leilões com base no direito legal de preferência dos museus do Ibram.

No entanto, todo o trabalho de reforço da institucionalidade realizado nos últimos anos no Museu Histórico Nacional, que tinha como objetivo fortalecer a gestão e o planejamento interno enfrentou a contínua luta pela preservação do orçamento que tem origem nos recursos do erário público e depende de diretrizes de governo. Além da tendência de sua diminuição progressiva, essa fonte de recursos convive com a demora de sua liberação e contingenciamentos constantes, inviabilizando qualquer planejamento que não seja flexível para se adaptar à ocasião. O cotidiano da gestão orçamentária e financeira vive de criar demandas especiais, que não pode se organizar em qualquer base de previsibilidade. A criação da necessidade de investimentos emergenciais permite eventualmente alguma complementação orçamentária que estabelece o extraordinário como regra.

Ao lado da gestão de orçamento e finanças, o planejamento institucional enfrenta a constante diminuição do quadro de funcionários e a falta de plano claro para suprir necessidades de recursos humanos. Certamente, a falta de renovação não favorece a inovação de práticas e procedimentos de trabalho, que tem como alternativa apenas a contratação de serviços. O processo de terceirização de serviços, tal como posto em funcionamento, não valoriza a formação de quadros que são sempre sujeitos à substituição e dificulta a administração de trabalhadores com condições diferenciadas de contrato. Esse modelo de gestão não favorece instituições de preservação de acervos, que necessitam da continuidade de procedimentos de conservação dos bens culturais, cuja qualidade depende da convivência de longo prazo com as peças. Do mesmo modo, a administração de públicos também exige continuidade do padrão de serviços de atendimento e segurança para imprimir a marca receptiva que deve caracterizar os museus. Ao mesmo tempo, as ações de controle interno e externo multiplicam a pressão sobre uma gestão institucional.

O que importa sublinhar, nesse quadro, é que a fragilidade institucional dos museus decorre da incapacidade de desenvolvimento de políticas públicas setoriais e da falta de compromisso de estado com investimentos nos órgãos vinculados à estrutura de governo, o que exige dos gestores públicos dos órgãos subordinados um empenho gigante na garantia da sustentabilidade institucional, sendo além disso o anteparo dos processos de controle social existentes, principalmente da parte do Ministério Público, pelos quais se tornam responsáveis, mas que decorrem da inconsistência da ordem estrutural. É comum se ouvir dizer que os museus federais não desenvolvem programas de comunicação dinâmicos. Esquece-se, porém, que sua condição de órgãos de governo obriga a todas as unidades a se submeterem à ordem e controle da comunicação de governo. Isso impede que os museus vinculados às instituições governamentais se afirmem como espaços de manifestação da sociedade, pois continuam sendo espaços de controle político do serviço público. Os sucessivos e permanentes cortes de orçamento indicam a falta de prioridade da área da cultura e dos museus no âmbito da gestão pública. Por outro lado, a marca de governo deslegitima igualmente a busca do apoio da sociedade civil para garantir a sustentabilidade da instituição, especialmente de marcas corporativas que são os maiores investidores, mas que nem sempre estão dispostos a se associar à ação de governo. Do mesmo modo, há os que sempre indicam que os museus não são capazes de produzir os próprios recursos pela venda de serviços. O juízo deixa de lado o fato de que nenhum grande museu no mundo produz todos os recursos de seu desenvolvimento, mas no caso dos museus que são vinculados ao Ibram, todos os recursos que produzem vão para o caixa do governo, o que significa que para os museus só resta a administração dos problemas que os serviços geram, não havendo horizonte de autonomia financeira para melhorar seus serviços básicos oferecidos ao público. Por exemplo, o aluguel de espaço para uma instalar loja, cafeteria ou restaurante não reverte recursos para a instituição que abriga e impõe o controle da qualidade do serviço do concessionário, o que envolve por exemplo segurança de equipamentos que podem representar riscos, além de coisas prosaicas como controle de pragas. A própria renovação do sistema de bilhetagem é comprometida pelas restrições da administração pública.

Essa instabilidade institucional interrompeu o Programa de Iniciação Científica dos Museus do Ibram com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), coordenado pelo Museu Histórico Nacional. O PIBIC – Ibram/ CNPq teve duas edições anuais com 10 bolsistas, e deu visibilidade aos doutores que integram os quadros do Ibram e estimulou a afirmação dos museus como centros de pesquisa. A falta de investimentos do Ibram não permitiu expandir o programa e os cortes de orçamento do CNPq, encerraram as suas atividades em 2020. Mesmo sendo atingido no seu programa de pesquisa, o Museu Histórico Nacional não deixou de realizar seu programa anual de seminários internacionais e publicar os livros correlatos e catálogo de exposições, além da revista Anais do Museu Histórico Nacional, renovada pelo formato eletrônico e em dois números anuais.

Dito de outro modo, não há nenhum risco em afirmar que a ordem política no Brasil atual não garante a sustentabilidade dos museus mantidos pelo estado que ficam presos nas amarras do governo. Apesar do eventual dinamismo e dos bons resultados de ações desenvolvidas, as restrições de orçamento e o papel exercido pelo governo instalam de modo decisivo um quadro de fragilidade que não garante a sustentabilidade institucional. Ainda assim, os museus e seus colaboradores resistem na defesa do serviço público.

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1

Dominique Poulot, Musée, nation, patrimoine: 1789-1815, Paris, Gallimard, 1997.

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2

George L. Mosse, La nacionalización de las masas, Madrid, Marcial Pons, 2019.

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3

Germain Bazin, Le temps des musées, Liège, Desoer, 1967.

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4

Decreto de 6 de junho de 1818. Cria um museu nesta Corte, e manda que ele seja estabelecido em um prédio do Campo de Sant’Anna que manda comprar e incorporar aos próprios da Coroa. Colecção das leis do Brazil de 1818; Parte 1, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1889. p. 60-61.

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5

Lilia M. Schwarcz, O espetáculo das raças, São Paulo, Cia das Letras, 1993. cap. 3.

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6

Esse quadro singular da história dos museus históricos no Brasil é tratado em: Paulo Knauss, “Cartografia dos museus de História no Brasil – uma escrita em movimento”, in Ana Lourdes de Aguiar Costa, Eneida Braga Rocha Lemos (org.), Anais 200 anos de museus no Brasil: desafios e perspectivas, Brasília, DF, Ibram, 2018, p. 78-88. Disponível em: https://www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2019/12/Anais-200anosMuseusBrasil_FINAL.pdf.

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7

Adolpho Dumans, A ideia de criação do Museu Histórico Nacional, Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. III, 1942, p. 383-342.

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8

A história da Exposição de História do Brasil de 1881 é tratada em: Maria Inez Turazzi, Iconografia e patrimônio; o Catálogo da Exposição de História do Brasil e a fisionomia da nação, Rio de Janeiro, FBN, 2009.

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9

Rogério Rezende Pinto, Alfredo Ferreira Lage, suas coleções e a constituição do Museu Mariano Procópio – Juiz de Fora, MG, dissertação de Mestrado em História, Juiz de Fora, UFJF, 2008.

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10

Cecília de Oliveira Ewbank, “A circulação das coisas do extinto Museu Simoens da Silva”, 28º Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas – Origens, Cidade de Goiás, 16 a 20 de setembro de 2019.

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11

Estado adquire acervo histórico do Museu Coronel David Carneiro”, Tribuna do Paraná. Curitiba, 27 de novembro de 2014. Sobre o pensamento de David Carneiro, veja-se: Daiane Vaiz Machado, O percurso intelectual de uma personalidade curitibana: David Carneiro, Dissertação de Mestrado em História, Curitiba, UFPR, 2012.

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12

Letícia Julião, “O SPHAN e a cultura museológica no Brasil”, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 22, nº 43, 2009, p. 141-161.

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13

Esse contexto histórico do pensamento social brasileiro foi tratado em: Lucia Lippi Oliveira, A questão nacional na Primeira República, Rio de Janeiro, Ed. FGV, 1989.

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14

Marcos Chor Maio, “Nem Rotschild nem Trotsky”: o pensamento antissemita de Gustavo Barroso, Rio de Janeiro, Imago, 1992.

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15

Erika Morais Cerqueira, Habitar o Passado: Gustavo Barroso e o seu tempo, Curitiba, Prismas, 2017.

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16

Vale destacar especialmente o projeto de pesquisa ECHOES – European Colonial Heritage Modalities in Entangled Cities, financiado pelo programa Horizon 2020 da União Europeia, ao qual o MHN se integrou graças ao convite da Profa. Marcia Chuva da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

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17

Hans Ulrich Gumbrecht, Depois de 1945: latência como origem do presente, São Paulo, Editora da Unesp, 2014.

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18

Verena Alberti, “Pedaços de narrativa nacional na exposição permanente do Museu Histórico Nacional”, XXII Simpósio Nacional de História, Conhecimento histórico e diálogo social, Natal, RN, 22 a 26 de julho de 2013.

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19

Pierre Nora, “Entre memória e história: a problemática dos lugares”, Projeto História, São Paulo, n. 10, dez. 1993, p. 13.

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20

Lucia Lippi Oliveira, “As festas que a República manda guardar”, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2., n. 4, 1989, p. 172-189. Nessa mesma época, houve também o decreto de criação da Ordem Militar e Civil de Colombo relacionado à efeméride americana, cuja condecoração nunca chegou a ser concebida definitivamente e, logo, foi suspensa por uma determinação geral que encerrava o ciclo das condecorações do Império do Brasil. Veja-se: Luiz Marques Poliano, “Ordens honoríficas do governo provisório (1890-1891)”, Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. II, 1941, p. 61- 84.

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21

É importante anotar que os motivos pelos quais a data do 12 de outubro é celebrada no Brasil atual não existiam na época da inauguração do MHN. O feriado nacional de N. Sra. da Aparecida só foi estabelecido em 1980, por ocasião da visita do papa João Paulo II e decorre evidentemente do reconhecimento da santa padroeira do Brasil pela Santa Sé no ano de 1930. Na atualidade, a data coincide ainda com do Dia da Criança, no Brasil, uma criação comercial da década de 1960.

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22

Marly da Silva Motta, A nação faz 100 anos: a questão nacional no centenário da Independência, Rio de Janeiro, Ed. FGV, 1992.

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23

Cecília Helena Salles de Oliveira, “7 de setembro”, in Circe Bittencourt (org.), Dicionário das datas da história do Brasil, Campinas, Ed. Contexto, 2007.

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24

A expressão usada tem como referência o estudo pioneiro sobre as exposições universais e o Brasil: Margarida de Souza Neves, As vitrines do progresso, Rio de Janeiro, PUC-Rio, 1986.

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25

A Exposição de 1922, Rio de Janeiro, 5 set. 1922. p. 7.

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26

A expressão usada tem como referência o estudo que se tornou clássico sobre o tema das exposições universais e o Brasil: Sandra Jatahy Pesavento, Exposições universais; espetáculos da modernidade do século XIX, São Paulo, Ed. Hucitec, 1997.

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27

Consta que depois da Exposição de 1922, o MHN passou a ocupar a Casa do Trem, uma das partes do complexo arquitetônico, onde outrora havia funcionado a fundição militar. Museu Histórico NacionalGuia do Visitante, Rio de Janeiro, MEC, 1955. Nos anos seguintes, com o fortalecimento das atividades da instituição e o crescimento de suas coleções, o Museu Histórico Nacional brasileiro passou a ocupar todo o complexo arquitetônico de 18mil m² e seu jardim urbano externo.

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28

Ruth Levy, A Exposição do Centenário e o meio arquitetônico carioca do início dos anos 20, Rio de Janeiro, EBA Publicações, 2010.; e Carlos Kessel, Arquitetura neocolonial, Rio de Janeiro, Jauá, 2008.

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29

Uma reflexão pioneira sobre o conceito de cultura da saudade em Gustavo Barroso se encontra em: Regina Abreu, “Memória, história, coleção”, Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 28, 1996, p. 37-64.

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30

Gustavo Barroso, “Museu histórico brasileiro”, Illustração Brazileira, Rio de Janeiro, dez, 1920.

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32

A placa existe ainda na coleção do Museu Histórico Nacional. A função educativa do Museu Histórico Nacional nas suas primeiras décadas foi analisada em: Ana Carolina Gelmini de Faria, Educar no museu: O Museu Histórico Nacional e a educação no campo dos museus (1932-1958), tese de doutorado em Educação, Porto Alegre, PPGE-UFRGS, 2017.

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33

François Hartog, Regimes de historicidade; presenteísmo e experiência do tempo, Belo Horizonte, Autêntica, 2014.

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34

François Hartog, “Tempo desorientado: tempo e história, ‘Como escrever a história da França?’”, Anos 90, Porto Alegre, n. 7, 1997, p. 7-28.

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35

Paulo Knauss, Bruno L. P. Carvalho, “Museus para se pensar o presente em perspectiva histórica”, in Bruno L. P. Carvalho, Ana Paula Tavares Teixeira (org.), História pública e divulgação de história 1ª. ed., São Paulo, Letra e Voz, 2019, v. 1, p. 139-153.

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36

“Declaração de Santiago, 1972”, Legislação sobre museus, Brasília, Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2012, p. 99-106.

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38

Paulo Knauss, “Morte e vida da memória nacional”, Comunicação & Memória, Rio de Janeiro, nº 2, junho 2021.

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39

Suzy da Silva Santos, Ecomuseus e museus comunitários no Brasil: estudo exploratório de possibilidades museológicas, Dissertação de mestrado em Museologia, orientadora: Marilia Xavier Cury, São Paulo, USP-PPGM, 2017.

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40

Ibram. Portaria nº 315, de 6 de setembro de 2017.

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41

A primeira formulação da missão institucional do Museu Histórico Nacional foi encontrada no Plano Museológico de 2008-2012, e dizia: “Servir a sociedade em seu desenvolvimento, educação, integração e inclusão, através da preservação e divulgação de testemunhos materiais e imateriais, relacionados à identidade brasileira.” Cf., MHN, Plano Museológico 2008, Arquivo Institucional do MHN.

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42

MHN, Plano Museológico 2016-2019, Arquivo Institucional do MHN.

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43

Aimée S. Duarte, Afinal, o que é cultura?; revisitando a constituinte de 1987-1988, Curitiba, Appris, 2020.

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44

Duncan F. Cameron, “Museum, a temple or the forum”, Curator The Museum Journal, v. 14, n. 1, March 1971.

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45

Michael Frisch, A shared authority. Essays on the craft and meaning of oral history and public history, Albany, NY, State University of New York Press, 1990.

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46

Ricardo Santhiago, “Duas palavras, muitos significados; alguns comentários sobre a história pública no Brasil”, in Ana Maria Mauad; Juniele Rabêlo Almeida, Ricardo Santhiago (org.), História pública no Brasil: sentidos e itinerários, São Paulo, Letra e Voz, 2016, p. 23-35.

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47

MHN, Programa Educativo e Cultural: A Política Educacional do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, MHN, 2019.

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48

MHN, Política de Aquisição e de Descarte de Acervos do Museu Histórico Nacional, 2017, Arquivo Institucional do MHN.

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49

Paulo Knauss, Aline Montenegro Magalhães, Rafael Zamorano Bezerra, “Sobre colecionismo engajado no Museu Histórico Nacional”, Em contato: comunidades, cultura e engajamento, São Paulo, Museu da Imigração, 2019. p. 35-44.; e Paulo Knauss, Rafael Zamorano Bezerra, Aline Montenegro Magalhães, “Trabalho colaborativo em museus: notas sobre o Museu Histórico Nacional”, in Andrea F. Costa et alii, A colaboração entre museus; ações educativas, pesquisa e produção de conhecimento, Rio de Janeiro, Museus Castro Maya, 2019, p. 62-72.

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50

Susane Worcman (org.), Heranças e lembranças: imigrantes judeus no Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, ARI, 1991.

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52

Artigo 3º da Lei nº 11.906, de 20 de janeiro de 2009. In: Legislação sobre museus, Brasília, Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2012. p. 44.

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53

Artigo 34 do Decreto nº 8.124, de 17 de outubro 2013.

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54

Faz-se uso da expressão fixada pelo livro: Rafael Cardoso (org.), O design brasileiro antes do design. Aspectos da história gráfica, 1870-1960, São Paulo, Cosac Naify, 2005.