Retratos das vítimas no Museu da Memória e dos Direitos Humanos, Santiago do Chile.
Em 2016, ao votar a favor do impeachment da presidenta Dilma Rousseff – uma ex-militante da luta armada contra a ditadura que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985 –, Jair Bolsonaro, então um deputado de pouco destaque e considerado folclórico, dedicou seu voto a Alberto Brilhante Ustra, declarado torturador durante o período ditatorial pela Justiça. Em 2018, Bolsonaro foi eleito presidente no Brasil.
Já em 11 de março do corrente ano, em seu discurso de posse como presidente do Chile, Gabriel Boric fez várias referências à figura histórica de Salvador Allende, ex-presidente do país, morto durante o golpe militar em 1973. Enquanto se dirigia ao Palácio de La Moneda, onde Allende acabou encurralado e morreu, Boric quebrou o protocolo, saiu do tapete vermelho e saudou a estátua do ex-presidente que fica em frente ao local.
Atitudes tão diferentes evidenciam formas também muito variadas de processamento dos passados ditatoriais vivenciados por esses países, não obstante também possam ser encontradas semelhanças. Tal processamento pode se dar através de diferentes meios – jurídicos, políticos, culturais, sociais, psicológicos –, muitas vezes articulados entre si, os quais diversos autores chamam de Justiça de Transição. Essa envolve, entre outros elementos, comissões da verdade, reparações financeiras, localização e identificação de corpos, reparações simbólicas, anistias, pedidos oficiais de desculpas, elaborações artísticas, criação de espaços de memória e reelaboração dos discursos públicos sobre o passado. Esses últimos ganharam um papel destacado sobretudo a partir da segunda metade da década de 1980, quando emergiu em todo o mundo o que o crítico literário Andreas Huyssen chamou de “sedução pela memória”1. Para o autor, “a intensidade dos desbordantes discursos de memória que caracterizam boa parte da cultura contemporânea em diversas partes do mundo” (p. 10) estaria ligada a transformações profundas das sensibilidades, como o encurtamento temporal e a aproximação espacial do planeta proporcionadas pelas novas tecnologias de comunicação e informação. Tais discursos se refeririam, prioritariamente, a memórias de acontecimentos traumáticos, como guerras, genocídios e, no caso que nos interessa aqui, ditaduras, tendo como referência o Holocausto nazista. “Ao mesmo tempo”, diz Huyssen, “é importante reconhecer que embora os discursos de memória possam parecer, de certo modo, um fenômeno global, no seu núcleo eles permanecem ligados à história de nações e estados específicos” (p. 16).
É a partir deste entrecruzamento e tensionamento entre fluxos globais, regionais, nacionais e locais que podemos compreender como os países do Cone Sul da América procuraram e procuram elaborar os passados ligados às ditaduras militares que assolaram a região desde o golpe do general Alfredo Strossner no Paraguai em 1954 até o fim da ditadura de Augusto Pinochet no Chile em 1990. Longos anos em que ditaduras se instalaram, em recortes temporais variados, no Paraguai (1954-1989), no Brasil (1964-1985), no Uruguai (1973-1985), no Chile (1973-1990), e na Argentina (1976-1983). Tais golpes ocorreram no contexto da Guerra Fria, apoiados, internamente, pelas elites econômicas e pelos grupos médios (temerosos do avanço do comunismo, sobretudo após a vitória da Revolução Cubana em 1959) e, no plano internacional, pelos EUA. Após tomarem o poder, os ditadores implantaram políticas estatais terroristas, perseguindo seus opositores com exílios, torturas, assassinatos, desaparecimentos forçados, sequestros de bebês e crianças, intimidações, desligamento de empregos públicos, censura, entre outros instrumentos. Procuraram também legitimar seus atos através, por exemplo, da associação de seus opositores com a corrupção, o comunismo internacional e a degradação de costumes, e da intensa propaganda ufanista nos meios de comunicação e nos sistemas escolares.
O perfil dos governos ditatoriais também variou em duração, intensidade da violência direta contra a sociedade civil, estratégias de repressão mais utilizadas e desejo maior ou menor de manter uma aparência democrática. As ditaduras do Paraguai e do Chile, por exemplo, tiveram um caráter mais individual, focadas nas figuras dos ditadores Strossner e Pinochet; já outras, como as da Argentina, Brasil e Uruguai, ficaram mais diluídas em diversas juntas e nomes, que se revezaram no poder em função de disputas entre os próprios militares e de eleições controladas pelos regimes autoritários. Também já foram comprovadas as conexões entre essas ditaduras, com, por exemplo, assassinatos e sequestros de opositores de um país dentro das fronteiras do país vizinho, a partir de trocas de informações e de cruzamentos fronteiriços clandestinos de forças repressivas. Tais conexões formaram o que se chamou “Operação Condor”.
A redemocratização desses países se deu, de modo geral, ao longo da década de 1980, após o virtual extermínio dos grupos de oposição armados e do fortalecimento das oposições democráticas, que venceram eleições, promoveram plebiscitos e protestos no âmbito da sociedade civil. Também deve-se considerar o enfraquecimento do apoio estadunidense às ditaduras e a difusão cada vez mais intensa do discurso dos direitos humanos a nível mundial. Alguns fatores mais específicos também atuaram para o fim desses regimes, como a derrota na Guerra das Malvinas, no caso da Argentina. Desde então, esses países implantaram políticas de Justiça de Transição através de mecanismos e com intensidades bastante variadas. Por exemplo, todos os países da região instituíram comissões da verdade, mas em períodos muito distintos, sendo a primeira criada na Argentina, logo depois do fim da ditadura, em 15 de dezembro de 1983, pelo então presidente da República Raúl Alfonsín, e a última, no Brasil, muitos anos depois do final do regime ditatorial, em 18 de novembro de 2011, pela já citada presidenta Dilma Rousseff. Essa distância temporal é mais um demonstrativo das diferenças dos processos de redemocratização vivenciados pelos países do Cone Sul. Para todos eles se colocou um desafio: como lidar com a memória desse passado traumático, desse passado tão presente e que ainda insiste em assombrar (e fragilizar) tais democracias, como ilustra de modo extremo o caso, já citado, de Bolsonaro, que sempre reafirmou o seu saudosismo da ditadura, valendo-se desse discurso tanto antes quando durante o seu mandato presidencial no Brasil. Não obstante as diferentes tentativas de solução implantadas nesses países – leis memoriais, museus, monumentos, arquivos, filmes, livros, programas escolares, etc. – todas se balizaram na crença do “Nunca más!”, ou seja, na possibilidade de o presente aprender com o passado, de não repetir seus erros, nesse caso, de não voltar a admitir regimes ditatoriais e práticas de terrorismo de Estado.
Os textos que compõem essa parte do dossiê tratam, desde ângulos diferenciados, dos conflitos de memória envolvendo o passado traumático das ditaduras de segurança nacional em quatro países: Argentina, Brasil, Chile e Uruguai.
Para o caso argentino, Ludmila da Silva Catela aborda as marcas de memória que disputam sentidos sobre passados mais recentes e mais distantes, referente às “tragédias da nação”. Para tanto, analisa as tensões entre as “memórias enquadradas”, valendo-se da denominação consagrada por Michel Pollak, organizadas a partir das políticas públicas estatais, e aquelas que o sociólogo chama de “subterrâneas”, as quais emergem no espaço urbano, muitas vezes de maneira efêmera, dando visibilidade a outras lembranças2. Como diz a autora: “La calle, ese espacio prohibido, peligroso y clandestino durante el terrorismo de Estado mediante la figura del estado de sitio, se transforma poco a poco con la llegada de la democracia en una trama a ser conquistada y ressignificada”.
No que se refere ao Brasil, Marcos Napolitano também examina disputas de memórias sobre a ditadura, desde as narrativas críticas ao regime ditatorial surgidas no processo de transição democrática iniciado no final dos anos 1970 até a guinada revisionista conservadora, tanto da direita liberal quanto da extrema-direita, surgidas a partir dos anos 2000, que procuram responsabilizar as esquerdas pelo golpe de Estado de 1964 e de provocar o acirramento da violência ditatorial na década de 1970. Em sua análise, o autor ressalta o papel dos historiadores diante do avanço dos discursos negacionistas e revisionistas conservadores, categoria cunhada por ele: “O quadro atual do processo memorial brasileiro em relação à ditadura, no ano em que o Brasil nação completa 200 anos e que vê se aproximar o contexto de uma decisiva eleição presidencial, assiste uma tensão crescente entre a memória revisionista e negacionista da ditadura e a ação pública de historiadores e movimentos sociais em defesa do conhecimento histórico pautado pela ética da verdade e pela epistemologia crítica”.
Caminho oposto parece ter seguido os conflitos memoriais no Chile, como mostra Graciela Rubio. Seu artigo examina as políticas de memória e os processos de memorialização ocorridas naquele país entre o fim da ditadura e o presente da escrita do texto. A autora enfoca duas narrativas contrapostas que alimentam o debate público: a narrativa centrada no Estado que atribui a crise da democracia e o golpe de 1973 à chamada “via chilena para o socialismo” de Allende e ao contexto polarizado da Guerra Fria e o que denomina de “narrativa cidadã”, ativadora de políticas de memorialização ligadas a imperativos éticos e de justiça, que promove anseios identitários de grupos subalternizados (como povos originários e mulheres) e critica a continuidade das políticas neoliberais após a redemocratização. No caso do Chile, Rubio detecta o declínio da memória hegemônica e a expansão de memórias críticas à conciliação desde acima e ao neoliberalismo. De acordo com ela, “Las posibilidades de elaboración del recuerdo en el periodo se despliegan altamente tensionadas por las propias contradicciones que residen en su propio origen, marcado por el terrorismo de estado y las políticas de deshumanización para consolidar el orden neoliberal excluyente y desigual”.
Nesses três textos, de caráter panorâmico, abundam termos como “tensões”, “disputas” e “conflitos”, evidenciando que os chamados “períodos de redemocratização” são, na verdade, compostos por vários presentes, os quais condicionam e transformam as formas de processar as memórias dos passados ditatoriais. Mostram, igualmente, que a condição de “hegemônicas” ou “enquadradas” assumida por certas memórias, mesmo contando com incentivos estatais, não é garantido. Ao contrário, sofrem o permanente desgaste de memórias clandestinas ou subalternas – tanto reacionárias (como no Brasil) quanto progressistas (como na Argentina e no Chile) – que podem, inclusive, substituí-las no seu posto de dominantes quando novas condições políticas e culturais assim o permitem.
No que tange ao Uruguai, Isabel Wschebor Pellegrino opta por um caminho diferente, analisando as memórias em conflito sobre a ditadura naquele país a partir de uma escala mais reduzida: as sucessivas ressignificações de um conjunto de arquivos da inteligência militar, desde sua produção durante o período ditatorial, passando pela divulgação pública de sua existência em 2006 até suas ressonâncias atuais. Com isso, põe em evidência a relação da história material dos documentos com a gestão daquele passado traumático em períodos mais recentes. Se a escala varia, das tendências amplas das políticas memoriais ao caso específico de um acervo documental, permanece a preocupação de refletir historicamente sobre formas variadas de gerir o passado ditatorial. A autora encerra seu texto assinalando a atualidade da discussão por ela proposta: “[...] el reclamo -quizás anticuado- en favor del acceso a los vestigios materiales del pasado como un patrimonio común y como garante de nuestro ‘derecho a saber’”.
Passados, presentes e futuros possíveis se entrelaçam então nos discursos memoriais estudados pelas autoras e pelo autor. Voltemos então à atualidade com a qual começamos essa apresentação.
No início de setembro do corrente ano, a população do Chile rejeitou, através de um plebiscito, a proposta de nova Constituição. O texto rejeitado foi escrito para substituir a atual Constituição Política do Chile, promulgada em 1980, portanto, ainda durante a ditadura de Pinochet. O projeto da nova Constituição, considerada bastante progressista, se baseava em dez pilares que reúnem “elementos fundamentais e normas mais relevantes”: democracia; inclusão; tradição institucional; garantias de direitos; liberdade; igualdade de gênero; proteção da natureza e do meio ambiente; regiões; projeção futura e economia responsável. Ou seja, apesar do significado da eleição de Boric para uma efetiva ruptura com o passado ditatorial, inclusive no que tange às políticas de memória, uma transformação mais radical encontra forte resistência no âmbito civil.
Pouco tempo depois, em finais de outubro, Bolsonaro foi derrotado por uma pequena margem, 50.9% a 49.1%, em sua pretensão de reeleição à presidência do Brasil. O vencedor foi Luiz Inácio Lula da Silva, que já havia governado o país de 2003 a 2011. Lula começou sua carreira política no final da década de 1970 liderando greves de trabalhadores contra a ditadura e suas políticas econômicas. Hoje, à frente de uma Frente Ampla Democrática, tem entre seus desafios combater em diversos níveis o negacionismo e o revisionismo de extrema-direita.
Mais uma vez os fatos demonstram que os processos de redemocratização não são lineares, inclusive no que tange a uma suposta aprendizagem com o passado. Ao contrário, estão sujeitos a muitos percalços e precisam sempre rever as suas políticas de memória (ou a ausência delas). Esperamos que os textos componentes do dossiê nos ajudem a refletir sobre os grandes desafios que se colocam às democracias no Cone Sul e a respeito das práticas memoriais que as ancoram ou questionam.
Notes
1
Andres Huyssen, Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia, Rio de Janeiro, Aeroplano, 2000.
2
Michel Pollak, Memoria, silencio y olvido. La construcción social de identidades frente a las situaciones limite, La Plata, Al Margen Editorial. 2006.