Um debate inconcluso na Argentina: Montoneros e a memória da luta armada
La Contraofensiva: el final de Montoneros

Hernán Confino, La Contraofensiva: el final de Montoneros, Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 2021

A história e a memória da luta armada não são apenas temas inconclusos na Argentina, mas feridas abertas que permeiam avaliações políticas, produções fílmicas, relatos memorialísticos e narrativas historiográficas. Um passado que não passa e que se prolonga num presente em que avós ainda buscam e, em alguns casos encontram, seus netos e netas; em que jovens adultos falam da busca por seus pais e mães desaparecidos ou narram sua infância marcada pela morte e ausência dos pais. Ao longo dos anos foram se configurando diferentes visões e avaliações sobre a luta armada argentina. O livro de Hernán Confino reacende e renova este debate juntando memórias afetivas e avaliações políticas de ex-integrantes da organização Montoneros que participaram diretamente da luta armada e de um dos episódios mais polêmicos desta organização: a Contraofensiva.

O debate sobre a luta armada na Argentina tem sido uma constante na vida intelectual e política do país desde 2004, quando Oscar del Barco, intelectual argentino, publicou na revista cordobesa La Intemperie uma carta fazendo críticas (na verdade também uma autocrítica) à luta armada. Del Barco denunciava episódios de justiçamento e colocava em questão posturas, práticas e mentalidades dos guerrilheiros. O alvo da crítica de Del Barco era um episódio que se passara numa guerrilha que existira na região de Salta, no início dos anos 1960, ou seja, bem anterior às guerrilhas dos Montoneros e do Ejército Revolucionario del Pueblo (ERP), as principais organizações de luta armada dos anos 1970 na Argentina. O texto de Del Barco não se referia a elas. Mas a publicação da carta deslanchou um amplo debate com intelectuais, ativistas políticos e ex-guerrilheiros discutindo e defendendo diferentes pontos de vista contra e a favor da experiência da luta armada. A imprensa e a historiografia registraram amplamente essa discussão, na qual eram debatidos não apenas a propriedade e eficácia da estratégia armada, mas também aspectos éticos e morais. A revista La Intemperie organizou um livro, No Matar – sobre la responsabilidade (2007) com as cartas e artigos publicadas não apenas na revista cordobesa, mas também em outras revistas como Conjetural, Confines e Lucha Armada. Além disso, jornais e revistas de caráter político e cultural divulgavam opiniões de intelectuais e pesquisadores como Beatriz Sarlo, Victoria Basualdo, Horácio Tarcus e Vera Carnovale, entre outros1.

O livro de Hernán Confino, de certa forma, traz de volta o debate em torno da luta armada, mas se debruça sobre um ponto específico: a Contraofensiva dos Montoneros. E aborda este ponto de uma perspectiva diferente. Nascido em 1986, Confino é bastante distante da experiência da guerrilha argentina. Sua abordagem, portanto, se “descola” da discussão crítica e autocrítica produzida pelas revelações de 2004. Por outro lado, exatamente por este distanciamento, ele consegue “se aproximar” de seus personagens com empatia, curiosidade e uma certa isenção moral. O que confere ao livro um olhar particular e uma marca autoral.

A Contraofensiva é um dos temas polêmicos da memória da luta armada argentina e diz respeito, exclusivamente, aos Montoneros. É importante assinalar a especificidade desta organização. Seu primeiro ato político foi o sequestro e o assassinato do general e ex-presidente Pedro Eugênio Aramburu em 1970. Aramburu participara do golpe de 1955 que derrubou o segundo governo de Perón, instalou uma ditadura e determinou a “proscrição”2 do peronismo3. O assassinato de Aramburu marcou a entrada dos Montoneros na vida política argentina. A organização, que se declarava socialista, revolucionária, peronista e de luta armada, era integrada, majoritariamente, por jovens católicos. Essa conjugação particular de elementos compôs um certo ethos dos Montoneros, com o qual as pesquisas historiográficas, necessariamente dialogam – seja para negá-lo, refutá-lo ou problematizá-lo4. Hernán Confino se coloca na terceira posição. A “Contraofensiva” foi muitas vezes vista como a expressão desse ethos, a experiência política definitiva, radical, polêmica e desastrosa que levou ao fim da organização. O termo e seu significado não são de todo conhecidos pelo público fora da Argentina e cabe ser aqui explicitado.

A “Contraofensiva”, definida no final de 1978 pela direção da organização, foi a ordem dada aos militantes montoneros que estavam no exílio para que retornassem à Argentina para realizar uma contraofensiva militar visando a derrubada da ditadura. Essa posição derivava de uma análise da conjuntura política que via a cúpula do poder desgastada e enfraquecida. Os militantes deveriam então retornar para travar o combate final e derrubar a ditadura militar. Entre 1979 e 1980 inúmeros militantes retornaram clandestinamente ao país para empreender a Contraofensiva. Uma grande parcela foi assassinada ou desaparecida. Esta ordem de retorno foi denunciada e criticada por familiares dos que morreram e inclusive por alguns daqueles que sobreviveram. A “Contraofensiva” se tornou um tema polêmico e incontornável na história política e, sobretudo, na história da esquerda argentina. Mas não apenas na historiografia. O tema tem transbordado para outras narrativas, como o cinema. Em 2012 foi lançado no Brasil o filme argentino Infância Clandestina, dirigido por Benjamin Avila, uma co-produção entre a Argentina, Brasil e Espanha. O filme narra o episódio da Contraofensiva a partir de uma família argentina que estava exilada no Brasil e que retorna à Argentina auxiliada por militantes de esquerda brasileiros. O filme trata seus personagens com lirismo e simpatia, apresentando diferentes posicionamentos sobre o episódio, mas deixa claro uma crítica à opção pelo retorno para o enfrentamento final.

O tema de Confino se delineia a partir daí. Seu ponto é questionar a visão com que, até então, tanto a historiografia como a memória enquadraram o tema da Contraofensiva. Seu objetivo, declarado logo nas primeiras páginas do livro, é ir além das interpretações e julgamentos já enraizados na historiografia e na memória de muitos militantes políticos, que enquadraram a Contraofensiva como um “gesto messiânico” ou uma “loucura”. O autor não se opõe exatamente a essa visão – que foi construída posteriormente, sob impacto da imensa derrota dos Montoneros – mas busca compreender como esta experiência foi vivida pela militância que dela participou; que sentido lhe foi atribuído pelos militantes que se envolveram nessa trágica empreitada. Confino procura construir um olhar “por dentro”, que possa trazer à tona os valores, os sentimentos, os impulsos, os recuos, os medos e as análises (equivocadas ou não) de um conjunto de pessoas que participou da Contraofensiva.

Seu estudo é extremamente abrangente. Confino recupera os principais países de exilio dos Montoneros – México, Espanha, Brasil, Líbano, Cuba, França –; as formas de recrutamento e treinamento dos militantes que deveriam se preparar para o retorno; os conflitos, indecisões e adesões a esta proposta. Apresenta também algumas das dissidências internas que se colocaram em oposição à Contraofensiva e foram consideradas traidoras pela direção da Organização. Uma dessas dissidências foi criada por dois militantes montoneros históricos: Rodolfo Galimberti e o poeta Juan Gelman5. Os dois foram acusados de “deserção, insubordinação e conspiração” (p. 154-155).

Confino se debruça sobre um conjunto amplo de fontes: documentos de época, imprensa partidária e, sobretudo, documentos dos Montoneros que avaliam, discutem, defendem e criticam a proposta da Contraofensiva. Textos enviados de diferentes exílios criticavam a direção dos Montoneros e a proposta de retorno. O autor examina com detalhes os argumentos que se cruzam neste debate oferecendo um retrato amplo dos conflitos e disputas políticas que atravessavam a organização entre 1979 e 1980.

Além desta investigação em torno dos argumentos, posições e propostas políticas, centrada em documentos escritos, o autor recorre a numerosas entrevistas. Algumas são entrevistas do acervo da organização Memoria Abierta, um dos maiores acervos de depoimentos sobre a história das ditaduras da Argentina. Além disso o autor realizou inúmera entrevistas com ex militantes Montoneros e, a partir delas, nos conta uma história desde adentro da Contraofensiva. Com estas entrevistas o autor procura trazer à tona o sentido que a Contraofensiva teve para aqueles que dela participaram. Acho que aí reside a principal questão de Hernán Confino. Penso que o autor procura entender menos o sentido histórico e político da Contraofensiva e mais os sentidos que lhes deram os homens e mulheres montoneros que dela participaram; todos eles: os que se integraram à Contraofensiva, os que desertaram e retornaram aos exílios, os que perderam entes queridos, os que a criticaram, os que elaboraram raciocínios para justificar sua participação ou sua desistência.

Esta é uma das grandes contribuições do livro. Os relatos são riquíssimos e descortinam os anos da década de 1970 e as diferentes dimensões da experiência política, pessoal, cultural e afetiva da luta armada. Lemos os relatos de ex-militantes que criticaram a perspectiva militarista em prol de uma visão política mais baseada na perspectiva dos Direitos Humanos; lemos relatos de pessoas que obedeceram a ordem de retorno e voltaram mesmo sabendo que poderiam morrer porque viam sentido neste ato. Em alguns depoimentos, principalmente em relação à segunda etapa da Contraofensiva, em 1980, ex-militantes revelam que retornaram sem acreditar na estratégia, mas movidos por lealdade aos companheiros e companheiras mortos6.

Os depoimentos também abordam um tema sensível em relação à memória da Contraofensiva. Sobreviventes e familiares dos que morreram fizeram muitas vezes uma acusação à direção dos Montoneros que ordenara o retorno dos militantes, mas permanecera, ela própria, no exílio, para se preservar. O livro nos mostra um quadro mais complexo: houve militantes da direção que voltaram e também vários deles morreram na Contraofensiva. Os depoimentos também discutem politicamente a estratégia de retorno. E muitos consideram um equívoco que a Contraofensiva seja vista apenas pelo seu lado militar e que as ações de agitação e propaganda política realizada pelas Tropas Especiales de Agitación (TEA) sejam desvalorizadas ou apagadas da história e da memória política desta experiência. Em suas entrevistas, Confino recupera histórias de vida, trajetórias, memórias, análises e pontos de vista de dezenas de militantes políticos. Resgata seus nomes e codinomes7. Algumas vezes só é possível conhecer seus nomes frios.

Os diferentes relatos que aparecem no livro nos permitem perceber a articulação entre memória, identidade e projeto, tal como foi compreendida pelo antropólogo brasileiro Gilberto Velho8para quem o projeto e a memória se articulam para dar significado à identidade. Os depoimentos são dados por homens e mulheres que, de certa forma, procuram entender e explicar suas trajetórias de vida marcadas por experiências politicas extremamente fortes, sejam elas vistas como positivas, negativas, equivocadas, dolorosas. O relato retrospectivo desse passado nos remete a uma identidade e a um projeto político geracional, mas não há uma memória única sobre a Contraofensiva. Os depoimentos nos mostram diferentes entendimentos e avaliações sobre o significado desta experiência. Esta pluralidade de visões retrospectivas sobre um episódio emblemático para uma geração evidencia a própria complexidade do evento e da construção de memórias em relação a experiências traumáticas, como foi a Contraofensiva dos Montoneros.

 

Mas, apesar do esforço em lançar uma luz diferente sobre o episódio, Hernán Confino não tem a menor dúvida de que a Contraofensiva foi definitiva para o final dos Montoneros: “La crisis que culminó con la desarticulación de Montoneros es inetendible sin la Contraofensiva” (p. 232). A Contraofensiva foi o ocaso dos Montoneros. Embora tenha sido pensada como uma estratégia para recuperar o protagonismo político da organização, foi o que determinou o fracasso de seu projeto político e seu próprio fim.

Além da ampla pesquisa com fontes primárias escritas e orais, Hernán Confino recorre a uma vasta bibliografia e se apoia no que existe de mais recente e novo na produção historiográfica e bibliográfica da Argentina e de outros países da América Latina sobre a ditadura militar e a luta armada. Os principais nomes da historiografia recente da Argentina embasam sua pesquisa: Marina Franco, Gabriela Aguila, Claudia Feld, Claudia Hilb, Silvia Jansen, Federico Lorenz, Alejandra Oberti, Aldo Marchesi, Vera Carnovale, Vania Markarian entre outros, representam uma geração de pesquisadores que vem refletindo, nas últimas décadas, sobre a história e a memória das ditaduras militares na América Latina.

O livro de Confino recupera e analisa práticas e representações, vivências e experiências, avaliações e produções de sentido de um grupo político crucial na história da Argentina e é uma contribuição para os pesquisadores que estudam a história das esquerdas latino-americanas. Além disso, ele é também um mergulho na sintaxe da militância política dos anos 1970 – as palavras, os jargões, os raciocínios, as disputas políticas, as diferentes tendências, as dissidências. Confino mergulha neste universo como que fascinado por uma realidade paralela. Ele nos apresenta um mundo talvez difícil de ser pensado e compreendido hoje: o mundo das décadas de 1960 e 1970, marcado por opções políticas radicais, pela luta armada em vários continentes e pela valorização da ação direta. Ou talvez seja ao contrário. A fragilidade e a vulnerabilidade que vivem as democracias hoje, se não forem sanadas, talvez se configurem como uma porta aberta para formas mais radicais de ação política.

Este é o grande perigo que as sociedades correm quando as democracias enfraquecem.

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1

Sarlo deu uma entrevista para o periodico La voz del Interior em 2005, intitulada “Trampas de la Memoria”, Basualdo e Tarcus escreveram sobre o tema em um número especial da Revista Políticas de la Memoria, editada pelo Centro de Documentación e Investigación de la Cultura de Izquierdas (CEDINCI) de 2006/2007 e Carnovale publicou seu texto na Revista Lucha Armada de 2007.

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2

A “proscrição” foi a proibição do exercício político do Partido Justicialista (peronista) que foi implantada após o golpe de 1955 e vigorou até as eleições de 1973.

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3

Daniel James, Nueva Historia Argentina. Violencia, proscripción y autoritarismo (1955-1976), Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 2003

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4

Lucas Lanusse, El mito de los 12 fundadores. Buenos Aires, Ediciones B Argentina, 2005.

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5

Juan Gelman é uma figura importante na história da luta contra as ditaduras e pelos Direitos Humanos na América Latina. Seu filho Marcelo, com 20 anos, e sua nora grávida, com 19 anos, foram sequestrados em 1976 e levados para o Uruguai. Os dois desapareceram e a criança foi entregue a um policial. Gelman passou os anos seguintes procurando a neta. No ano 2000 encontrou a jovem Macarena, então com 24 anos.

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6

Este parece ser um sentimento conhecido pela militância da luta armada em diferentes países. O jornalista e cineasta brasileiro Renato Tapajós, que foi integrante da organização armada Ala Vermelha, escreveu durante sua prisão o livro Em Câmara Lenta, publicado em 1977. No romance, o personagem principal declara que continua na luta em função do compromisso com os que morreram, ele próprio não acredita mais na possibilidade de sucesso e vai para o confronto sabendo que vai morrer. Na verdade, parece desejar essa morte, porque nada mais fazia sentido sem as pessoas que amava.

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7

Apelidos ou “nomes frios” que encobriam a identidade do militante clandestino.

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8

Gilberto Velho, Projeto e metamorfoses - Antropologia das sociedades complexas, Rio de Janeiro, Editora Jorge Zahar, 1994.

Referências Bibliográficas

 

Victoria Basualdo, “Derivaciones possibles de la polémica iniciada por Oscar del Barco: reflexiones para uma agenda de investigación”, Revista Políticas de la Memoria, no 6/7, 2006-2007.

 

Vera Carnovale, “En la mira perretista. Las ejecuciones de ‘largo brazo de la justicia popular’”, Revista Lucha Armada, vol. 3, no 8, 2007.

 

Daniel James, Nueva Historia Argentina. Violencia, proscripción y autoritarismo (1955-1976), Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 2003.

 

Lucas Lanusse, El mito de los 12 fundadores. Buenos Aires, Ediciones B Argentina, 2005.

 

Beatriz Sarlo, “Trampas de la Memoria”, entrevista La Voz del Interior, 09/10/2005.

 

Renato Tapajós, Em cámara lenta, São Paulo, Alfa Omega, 1977.

 

Horacio Tarcus, “Notas para una critica de la razón instrumental. A propósito del debate em torno a la carta de Oscar del Barco”, Revista Políticas de la Memoria, no 6/7, 2006-2007.

 

Gilberto Velho, Projeto e metamorfoses - Antropologia das sociedades complexas, Rio de Janeiro, Editora Jorge Zahar, 1994.

Referência filmográfica

 

Infância Clandestina.

Direção: Benjamin Avila

Roteiro: Marcelo Muller

Ano da produção: 2011

Filme argentino com produção conjunta com Brasil e Espanha.